quinta-feira, 26 de junho de 2008

A escravidão medieval.

A presente pesquisa se ateve a duas obras: ‘Escravos e servidão doméstica na idade média’ de Jacques Heers, professor da Sorbone em Paris, renomado acadêmico por seus estudos das estruturas sociais e das mentalidades coletivas; bem como a obra ‘O problema da escravidão na cultura ocidental’ de David Brion Davis, professor de História na Universidade de Yale e presidente da Organization of American Historians. A sociedade medieval é frequentemente estereotipada pela presença de alguns tipos característicos do período. Falar em idade média é falar de uma complexidade a qual fica evidencia pelo seu caráter de longa duração. Há um consenso entre ambos de que a esteriotipação do período a determinados modelos deve-se a restrição do campo de pesquisa à delimitação territorial desta a certos centros europeus, principalmente franceses e partindo desta pesquisa delimitada tentar responder a problemas históricos relativos a toda a Europa.
Ao historiador desavisado pode parecer estranho que uma instituição como a escravidão, depois de desaparecer por séculos ressurja a partir do século XVI com tamanho vigor. Mas é exatamente neste ponto que encontra-se o equívoco histórico, a escravidão nunca deixou de existir como tal até o século XIX, há uma continuidade desconsiderada pela maioria historiográfica que liga a escravidão antiga à escravidão moderna. Desta forma logicamente há um escravidão medieval.
David Brion Davis conceitua escravidão:
“Em , geral costuma-se dizer que o escravo tem três características que o definem: sua pessoa é propriedade de outro homem, sua vontade está sujeita à autoridade de seu proprietário e seu trabalho ou serviços são obtidos por meio de coerção. Como, às vezes, essa descrição podia ser aplicada às esposas e crianças de uma família patriarcal, vários escritores acrescentaram que a escravidão deve se dar “fora dos limites das relações familiares.” Alguns outros atributos derivam da definição de escravo como propriedade móvel. Seu status não depende de sua relação com um proprietário particular e não é limitado pelo tempo ou pelo espaço. Sua condição é hereditária e a propriedade de sua pessoa é alienável.
Como as leis que governam a propriedade do escravo se desenvolveram aos poucos a partir das primeiras civilizações, foi quase universalmente aprovado que o escravo poderia ser comprado, vendido, comercializado, arrendado, hipotecado, legado, doado como um presente, penhorado por um débito, incluído em um dote, ou confiscado em uma bancarrota. Por mais de três mil anos essas características legais da escravidão mudarão muito pouco; e no mundo ocidental foi a lei romana que deu uma forma sistemática e duradoura aos direitos dos senhores e dos escravos.
Na maior parte dos aspectos era conveniente considerar o escravo como objeto, como um ser sem direitos ou família, ou até mesmo com outro nome, dado a ele por seu proprietário. Os romanos simplesmente sistematizavam a pratica de muitas nações quando decretavam que o escravo não podia fazer um testamento ou denúncias formais em acusações criminais ou aparecer como testemunha na maioria das causas cíveis. Mas havia situações em que a lei não podia ignorar os limites humanos do escravo. Os escravos eram universalmente punidos por delitos, e muitas nações lhes permitiam determinados limites legais e lhes proporcionavam, no mínimo, proteção teórica contra assassinato e danos corporais severos. Foi por essa razão que os juristas romanos reconheceram abertamente que o escravo era tanto uma pessoa quanto uma coisa.”
( Davis,David Brion, O problema da escravidão na cultura ocidental, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2001, pg. 49-51)
Esse ‘objeto’ era comercializado na antiguidade, na modernidade e da mesma forma na idade média. O trabalho coercitivo na idade média conheceu várias modalidades conceituais que conferiam ‘status’ diferenciados aos indivíduos sujeitos a essa coerção social. Existiam várias formas de servidão que difere da servidão clássica. Essa aponta que o servo não poderia ser vendido, estando este preso à terra, que, embora exercesse um trabalho coercitivo, a corvéia, esse trabalhador não era comercializado, pois seu estatuto jurídico era diferenciado do escravo. Veja o que diz Jacques Heers:
“Em certas regiões da Itália, terra de observação privilegiada tanto os documentos abundam e fazem, aqui, mais do que lançar alguns raros claros, a confusão entre servos da gleba e escravos da casa, que se verifica mesmo nos fatos onde coexistem os dois tipos de servidão; os textos falam então em muitas vezes dos uomini di masnada. A própria palavra de masnada (em francês, a mesnie ou a livrée) pode na verdade ter – como todas as palavras que se relacionam com as estruturas sociais deste passado “medieval” – mais duma única significação, e isso introduz na interpretação uma parte de incerteza e de ambigüidade. A masnada pode ser, com efeito, ou o conjunto dos parentes que se reclamam da mesma descendência, ou o conjunto dos servos, rústicos ou domésticos que dependem do mesmo domínio senhorial. O que quer que seja, estes servitii di masnada mantem ainda, nas regiões de montanhas, uma importância e um peso social consideráveis nos anos 1300, portanto, muito depois dos grandes movimentos de emancipação nascidos nas comunidades urbanas. No Friuli, por exemplo, os servos dos grandes senhores contam-se às dezenas, até mesmo às centenas. E estes homens de masnada parecem compreender ao mesmo tempo servos rurais e escravos adscritos à casa do senhor; este pode muito facilmente, sem nenhuma restrição, vendê-los ou cedê-los, trocá-los ou hipotecá-los; o mercado se servos de masnada parece bastante ativo, muito mais ativo do que o dos servos da gleba nas regiões situadas mais a oeste, na França , por exemplo. Na verdade, parecem na maior parte nativos da região, portanto saídos de longas descendências de servos; mas outros chegaram recentemente de regiões mais ou menos longínquas, pessoas de Istria e mesmo do Oriente, comprados em Veneza e conduzidos, para um serviço servil, para as terras do interior. Assim a confusão entre herança indígena antiga, autóctone, e o contributo estrangeiro ligado ao trato parece completamente estabelecido; os mesmos termos e as mesmas condições jurídicas aplicam-se aos servos rurais e aos escravos propriamente domésticos; uomini di masnada são por vezes dados pelos seus pais às mulheres nobres por ocasião do seu casamento, como criadas ou damas de companhia.”
(Heers, Jacques; Escravos e servidão doméstica na idade média, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1983, pg. 17)
Situações pouco pesquisadas são apontadas por esse autor, como por exemplo, a servidão exercida por nobres. Como a dívida não paga acarretava em prisão, a alternativa a isso era entregar-se como servo a seu respectivo credor. Contudo, como o pertencimento a aristocracia se devia “ao sangue” e não efetivamente a uma relação de poder econômico, esses nobres que se entregavam voluntariamente a servidão visando burlar a prisão por dívidas, embora servos, permaneciam quanto nobres. Desta forma Heers descreve uma hierarquia estatutária dentro do regime de “servidão”, que de maneira geral era “confundido” mesmo com o regime escravocrata; no que concorda Davis.
“A insegurança e a ausência de direitos do escravo tem sido habitualmente contrastadas ao ‘status’ do servo, sujeito a um lorde particular, ligado a um pedaço de terra, e responsável apenas por obrigações e serviços prescritos. Essa nítida distinção foi pressuposta em teorias do desenvolvimento histórico que caracterizam a ascensão do escravo a colono, servo e camponês livre. No entanto, como veremos, as transições de um estágio para o outro eram raramente bem delimitadas. Não só a escravidão e a servidão coexistiram e se sobrepuseram, mas também os juristas medievais tendiam a confundir as duas condições. Os estudiosos da lei franceses traduziram as palavras servitus e servus do Código de Justiniano como ‘servidão’ e ‘servo’. Eles consideraram o servo francês como legalmente sujeito à autoridade quase absoluta de seu proprietário, e como alienável pela venda, troca ou presente. Do mesmo modo, Bracton identificou os vilões ingleses com os ‘servi’ romanos, e cuidadosamente distinguiu-os dos adscripticii e dos coloni, cujos direitos tinham sido protegidos pelo Estado. Teoricamente, o vilão era escravo que podia ser vendido separadamente do feudo e cujo trabalho não era regulamentado pela lei. Se sua vida não podia ser tirada impunemente por seu senhor, o mesmo era verdade para o escravo romano do Império tardio.
A convicção de que os vilões eram legalmente ligados ao solo foi, parcialmente, resultado de um equívoco que surgiu no século XVI e,mais tarde, corroborou a crença de que a Inglaterra tinha “um ar muito puro para um escravo respirar”. Chegou a ser admitido que os vilões regardants (apegados) a um feudo, enquanto opostos aos vilões in gross ( de modo geral), haviam desfrutado da segurança legal de estarem ligados ao solo. Todavia, na prática, as duas expressões meramente indicaram o modo pelo qual um lorde comprovava seu título a um vilão: se ele possuía um título ou uma confissão de ‘status’, seu vilão era considerado in gross; ao contrário, ele apontava o feudo e pleiteava seu direito normativo. Mas em ambos os casos ele era livre para transmitir ou vender seu vilão como quisesse.
Naturalmente, havia uma enorme lacuna entre o ‘status’ legal do vilão ou do servo e sua condição efetiva em uma sociedade feudal. De acordo com os costumes e as circunstâncias econômicas, de fato o servo era ligado ao solo. Não havia mercado algum para uma força de trabalho móvel, e qualquer incentivo para maximizar a produção das mercadorias agrícolas. Sem dúvida, em geral os servos escaparam das piores pressões e inseguranças da escravidão. Mas um reconhecimento dos efeitos restritivos dos costumes e das condições econômicas só aumenta a dificuldade de chegar a definições precisas da servidão. A palavra “escravo”, quando limitada aos negros, dificilmente tinha o mesmo significado quando aplicada aos trabalhadores do campo, aos cocheiros e aos empregados encarregados da casa; uma variação semelhante nas condições individuais dos escravos pode ser encontrada na maior parte das sociedades. Os termos “servant”, “bondsmam” e “slave” (servo cativo e escravo) frequentemente tem sido aceitos como sinônimos; sem exagero, Catarina, a Grande, referia-se ao campesinato senhorial da Rússia como escravos e não como servos. Nenhuma definição singular conseguiu abranger as variedades históricas da escravidão ou distinguir, com clareza, a instituição, a partir de outros tipos de servidão involuntária.
Além disso, na maior parte das línguas, a palavra escravo tornou-se ainda menos específica, devido ao seu uso metafórico. Assim em Shakespeare: “Deixe-me ser um escravo, para conquistar aquela criada”; “A intenção é simplesmente escrava da memória; “Mas o pensamento é escravo da Vida, e a Vida, do Tempo louco”. Todavia, mesmo esses significados sugerem que os homens sempre reconheceram a escravidão como limite extremo em matéria de dependência e perda da liberdade natural, como aquela condição em que o homem chega mais perto do ‘status’ de coisa.
Mas essa confusão de distinções nem sempre implicou uma elevação de ‘status’. Embora o servo francês fosse protegido pelo costume local e houvesse pouco incentivo para explorar seu trabalho para lucro comercial ou industrial, ele desfrutava de poucos direitos legais não possuídos pelos escravos romanos do Império tardio. Como sugerimos, a renovação da lei romana também renovou o conceito de escravidão que os juristas medievais tomaram como próprio modelo para a servidão . Definido como propriedade móvel, o servo francês era teoricamente subordinado ao poder disciplinar quase ilimitado de seu proprietário. N o tribunal, ele podia testemunhar somente contra outro servo; só se tivesse permissão podia se casar com servo de outro senhor. Sob a lei dos lombardos e dos francos, o filho de pais de ‘status’ diferentes herdava a condição mais baixa; mas, no século XIII, os tribunais franceses, exceto na Borgonha, estenderam a regra romana de partus sequitur ventren para os servos. E ao mesmo tempo que a verdadeira escravidão começara a desaparecer na França ocidental durante o século XI, ela se espalhou, posteriormente, na maior parte das regiões do nordeste e sudeste de Paris, onde durante o século XIV foi o sistema básico de trabalho. Em áreas como a Lombardia e o Piemonte, os escravos domésticos persistiram como uma classe distinta do campesinato dependente; embora a servidão tenha declinado na Alemanha ocidental durante o final da Idade Média, tornou-se uma forma próxima à escravidão no leste entrincheirado do rio Elba.
No Domesday Book, aproximadamente 10% da população registrada foram classificados como inteiramente escravos. Legalmente, nada mais do que bens móveis, aparentemente, essas pessoas podiam ser mortas por seus proprietários sem penalidade; se um homem livre matasse um escravo de outro, ele era responsável somente pelo valor de mercado do homem. E mais, os escravos do Domesday tinham direito, pela lei anglo-saxônia, a rações anuais específicas e, de acordo com os costumes, eram aparentemente concedidos certos direitos à propriedade e ao lazer. Eram também protegidos, em algumas instâncias, pela Igreja, que, como grande proprietária de terras, possuía muitos escravos.
Os vilões constituíam a maior parcela da população inglesa conforme registrado no Domesday Book. O termo villanus, no entanto, é coberto de ambigüidades. Na França, o vilain era um cidadão livre. Os vilões ingleses do século XI ainda retinham certos vestígios de sua liberdade anterior e, às vezes, a palavra referia-se somente a um tipo de posse. Mas aos poucos, villanus passou a conotar um ‘status’ vago de quase total falta de liberdade que era facilmente confundido com escravidão. Embora a sociedade inglesa fosse dividida, de fato, em um número de classes de homens sem liberdade – os coliberti, coceti, cotarii, bordarii, etc. -, Bracton acompanhou o grande jurista de Bolonha, Azo, na afirmação de que todos os homens eram livres ou escravos.
A discrepância entre as instituições inglesas e os conceitos legais romanos torna difícil discutir vilania com alguma precisão. A dificuldade deve-se ao fato de a escravidão verdadeira ter realmente desaparecido na Inglaterra durante o século XIII, enquanto os vilões continuaram a perder o que restava de suas liberdades anteriores. Como escravo, a pessoa do vilão pertencia a seu senhor, que era teoricamente livre para usar ou dispor de sua propriedade de qualquer maneira não especificamente proibida por lei. Entretanto, na prática, o vilão achou proteção na imobilidade econômica feudal. Os costumes lhe garantiam certos privilégios e asseguravam expectativas. A Igreja santificava seu casamento e lhe concedia a dignidade de um ser humano. O código penal fazia poucas distinções entre homens livres e vilões, de modo que, até mesmo Bracton afirmou o princípio de que ao mesmo tempo que um vilão estava sujeito à vontade de seu senhor, ele era livre em suas relações com o resto da sociedade. Isso não era absolutamente verdadeiro, como observara Glanvill. Para os herdeiros ou credores de um senhor, ou para a mulher livre que quisesse se casar com ele, o vilão não era um homem livre. No entanto, sua servidão era peculiarmente circunscrita ao domínio territorial de seu lorde, e limitada pelos costumes e prescrições de uma sociedade orgânica.
No entanto, a questão fundamental é que a vilania dava aos juristas e aos estudiosos uma oportunidade de manter vivos os conceitos romanos de escravidão. Foi o veículo, por assim dizer, que serviu para transmitir noções legais de subordinação total ao início da era moderna. No Dialogus de Scaccario, Glanvill, Bracton e outros juristas menores do final da Idade Média tentaram aplicar a lei romana da escravidão à servidão. Glanvill tentou conformar também vilania à regra romana do partus sequitur ventren, embora durante o final do século XIII o direito consuetudinário regesse que o ‘status’ de servidão passava de pai para filho. No século seguinte, os tribunais decidiram que os bastardos deveriam ser julgados livres, já que o ‘status’ de seus pais era desconhecido. Mas os mesmos juizes que aplicavam o princípio do direito consuetudinário de favor libertatis também continuavam a pensar a vilania como essencialmente equivalente à escravidão romana. Apesar dos efeitos do enclosure, da ampliação dos mercados, da peste bubônica e da Guerra dos Cem Anos, a condição legal dos vilões permaneceu, na verdade, inalterada. Quando uma redução do trabalho e os salários crescentes ameaçaram arruinar todo o sistema feudal, no final do século XIV, os antigos princípios de servidão justificaram leis severas para manter os trabalhadores na terra. As leis, naturalmente, não podiam evitar a transformação econômica. Durante os séculos XV e XVI, os serviços feudais aos poucos deram lugar às rendas, aos livres contratos e aos pagamentos monetários. A verdadeira vilania tornou-se economicamente obsoleta. E, no entanto, o princípio legal da escravidão subsistia como uma arma de controle social. Em 1547, os vagabundos que tentassem escapar do serviço forçado eram marcados na testa com a letra “S”, o que significava que deveriam ser “escravos” pelo resto de suas vidas.
Há um contraste extraordinário entre o destino da escravidão nas partes isoladas da Europa medieval e nas áreas limitadas que mantinham contato comercial e militar com o mundo externo. Quando os sarracenos invadiram a Península Ibérica, o sistema de escravidão existente era muito parecido com o que fora no final do Império romano. Mas a luta contínua entre cristãos e mulçumanos trouxe uma mudança decisiva. Por uns séculos, os dois lados escravizaram prisioneiros da religião oposta. Como a classe servil de cristãos subiu, aos poucos, vários estágios de servidão, a mais baixa ordem de trabalho era ocupada por muçulmanos cativos. Por toda a Península Ibérica, as guerras religiosas mantinham a escravidão ativa como uma instituição vital ao restabelecimento do comércio do Mediterrâneo, com uma continuidade ininterrupta desde os tempos romanos.
Se, de um lado, a escravidão quase desapareceu nos domínios feudais da Europa, por outro, florescia nos centros urbanos de cultura e de civilização como Córdoba e Constantinopla, nos extremos do continente. E revivia e se espalhava com o desenvolvimento do comércio. Nos séculos X e XI, ao descer o Volga e os vales de Dnieper, os mercadores suecos estabeleceram contato com os califas de Bagdá e com o Império Bizantino; levando cera e peles, trocavam escravos por especiarias e seda do Oriente. Os mercadores e príncipes da Rússia de Kiev viam a exploração de escravos como uma de suas principais fontes de riqueza. Ao mesmo tempo, empreendedores venezianos transportavam escravos, capturados ou comprados na costa dalmatense, para os haréns da Síria e do Egito; esse comércio, de acordo com Henri Pirenne, era tão vital à prosperidade de Veneza quanto, posteriormente, o comércio de escravos no Atlântico foi para as economias da Grã-Bretanha e da França.
Bem antes do nascimento de Colombo, os mercadores genoveses e os venezianos inventaram diferentes instituições que, mais tarde, seriam utilizadas no comércio africano e na colonização das Índias Ocidentais. Chegando às costas do Mar Negro, no século XIII, finalmente estabeleceram bases ou feitorias que se tornaram mercados prósperos para a compra de escravos. Como, posteriormente, os portugueses que construíram fortalezas na África ocidental, os italianos não precisavam capturar escravos para as suas. Praças, como Tana, fervilhavam de mercadores tártaros que, ansiosamente, trocavam suas crianças, vizinhos ou cativos por mercadorias preciosas. Os italianos não só criaram sociedades comerciais, estabelecimentos comerciais ou fondachi, e um comércio de escravos altamente organizado, mas na colônia de Chipre estabeleceram ‘plantations’ em que usavam escravos importados no cultivo de cana-de-açúcar. Na verdade, em 1300, havia escravos negros em Chipre, que se tornaram realmente um protótipo para as colônias das Índias Ocidentais. Nas palavras de Charles Verlinden, “A economia escravocrata das colônias modernas é pura e simplesmente a continuação daquela das colônias medievais.” Há muito ainda o que aprender sobre a continuidade entre o comércio do Mediterrâneo e do Atlântico, mas é significativo que as nações mais tarde colonizadas se voltassem para a teoria e práticas comerciais italianas, que houvesse relações de comércio estreitas entre Veneza e Inglaterra, que certos comerciantes genoveses que tinham escravos em Chipre desempenhassem um papel importante no comércio em desenvolvimento no Atlântico, e que os marinheiros e mercadores italianos que estavam familiarizados com o Mar Negro e com o Mediterrâneo oriental fossem atraídos pelas primeiras aventuras de exploração espanholas e portuguesas.
O grande comércio de escravos do Mediterrâneo atingiu seu auge nos séculos XIV e XV. Os tolerantes genoveses supriam os comerciantes sarracenos com navios e escravos cristãos, e até assinaram um tratado com o cã Kamchil de Solgat para a volta dos fugitivos. Tártaros, circassianos, armênios, georgianos e búlgaros desaguavam nos mercados da Itália e da Espanha. O esplendor de Veneza e da Toscana, como o da antiga Roma e o de Atenas, estava estreitamente relacionado com a escravidão. Íris Origo descobriu que, entre 1414 e 1423, nada menos que dez mil escravos foram vendidos só em Veneza. Nos séculos XIV e XV eles constituíram uma proporção significativa da população da Toscana, e, em Florença, era comum os donos de pequenos armazéns e até mesmo freiras e padres possuírem um escravo. E, embora a venda de cristãos fosse eventualmente denunciada como impiedosa e, em 1386, o Senado de Veneza tenha abolido o mercado de cativos na ‘piazza’, era claro que os mercadores desrespeitavam todas as tentativas de regulamentação. Os italianos não sentiam necessidade alguma de defender o comércio do Mar Negro mais do que o de pagãos, judeus e muçulmanos que eles misturavam nos grandes mercados do Oriente. No mesmo período, de acordo com Charles Verlinden, Aragão e Catalunha eram sociedades de escravos de um extremo ao outro, sendo a oferta de cativos muçulmanos na África do Norte aumentada pelos circassianos e georgianos do Mar Negro.
Assim, no final da Idade Média havia sociedades de escravos ao longo das principais rotas de comércio da Rússia e do Egito para Veneza e para o sul da França. Mas, no fim do século XV, como escreveu Alberto Tenenti, os mercadores de Tana ficaram só na memória. Após sobreviverem a uma hoste de invasões do leste, os mercadores de escravos do Mar Negro foram fechados pela tomada de Constantinopla e de Dardanelos pelos turcos. Em Florença, o preço dos escravos subiu tão proibitivamente que logo se tornaram um luxo que somente nobres ou ricos mercadores tinham recursos para ter. As crianças negras seriam mantidas como animais de estimação e dadas como presentes nas cortes da Renascença de Mântua, Milão e Ferrara. Os corsários continuariam a fornecer um pequeno número de escravos, e os escravos trabalhariam nas grandes galés da Renascença. Mas com o fim de um comércio organizado de escravos, a instituição tornava-se cada vez mais associada ao sistema extorsivo de pirataria e de resgate.”
(Davis, David Brion, O problema da escravidão na cultura ocidental, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2001, pg. 51-53; 56-61)
È neste contexto medieval que a Igreja se constitui solidamente como uma Instituição que ocupa o cume de uma pirâmide social. Em sua posição privilegiada é detentora de um discurso que visa oferecer uma visão de mundo e explicar a ordem deste. Nisso está implícito a manutenção desta ordem. Em relação à escravidão a Igreja não era indiferente a esta, podendo-se dizer que ela era até mesmo conivente com a situação dos escravos visto ser ela mesmo detentora de inúmeros cativos.
“Os escravos pagãos, muçulmanos, heréticos ou cismáticos parecem ser todos tratados da mesma maneira, pelos eclesiásticos como pelos seus outros senhores. Na verdade, esta atitude das gentes da Igreja pode surpreender e chocar. De fato, estas inserem-se perfeitamente no seu meio social e seguem exatamente os usos dele. Todos os religiosos possuem, nos lugares em que a servidão faz parte dos costumes, escravos. Na Catalunha e na ilha de Maiorca, já o observamos, os mosteiros mantinham, imediatamente após a Reconquista, os seus grandes domínios rurais, por um lado, graças a uma mão-de-obra servil freqüentemente de origem longínqua. Nas grandes cidades do mundo mediterrânico, em Barcelona, em Gênova, em Marselha, , por exemplo, padres ou religiosos possuem um ou vários escravos domésticos. Os autos dos notários genoveses mostram, durante séculos, abades e superiores dos mosteiros da cidade, sobretudo para as comunidades de mulheres, a comprar e a vender escravos. Estes parecem mesmo freqüentemente mais numerosos do que o exigiriam as simples necessidades do serviço doméstico. Em Janeiro de 1396, as freiras de Santo Stefano de Sam Píer d’Arena tinham comprado – por intermédio do seu encarregado de negócios- uma mulher chamada Margarita, oferecida em praça pública por ocasião da sucessão do seu senhor, Agostinho de Mari; Margarita tinha prometido servir no seu convento durante seis anos, mas a abadessa, com o consentimento de cinco outras religiosas presentes, decide alugar os seus serviços a um fabricante de pano por um salário de doze libras. Eis portanto uma escrava comprada por freiras que não tinham ocupação para ela no seu convento, de modo que preferiram alugá-la a um terceiro. Estas religiosas, visto os seus nomes, pertenciam a famílias nobres da cidade e algumas podiam mesmo possuir, por conta própria, uma escrava consagrada à sua pessoa, para o seu serviço privado. Ainda em 1521, um nobre da cidade, Stefano di Grimaldi, vende a Mariola de Marinis, também ela nobre, religiosa no mosteiro de Santo Stefano, uma jovem de vinte e três anos chamada Caterina, de origem moura, garantida sem doenças nem vícios, e convertida; o seu preço atinge a soma bastante razoável de cento e cinqüenta libras, imediatamente pagas. E não faltam exemplos, no correr dos anos, destas mulheres vivendo em convento, acompanhadas e servidas por uma escrava doméstica comprada as suas custas. Além disso, as igrejas e os mosteiros recolhem por vezes escravos libertos mas ainda endividados; certos senhores confiam também a padres os filhos de escravos que não querem guardar em casa; os conventos podiam ainda alimentar crianças nascidas de mulheres escravas, abandonadas ou educadas na sua juventude por hospícios ou obras de caridade. Em Gênova, um ourives da cidade, Giuliano Vinacia, cede gratuitamente a um padre, da Igreja da Santa Maria delle Vigne, uma pequena escrava de três anos, Lucchina, de raça tártara, que é sua própria filha, nascida de sua escrava; isto, diz a fim de recompensar serviços que lhe prestou este padre, e também “por amor a justiça”.
Nenhum recenseamento preciso permite calcular mesmo grosseiramente o número de domésticos assim ligados aos estabelecimentos eclesiásticos ou à própria pessoa dos religioso. Em Gênova, os bens da Igreja ficam isentos de qualquer taxa imposta pela comuna e estes escravos não são portanto atingidos pela gabella sclavorum; não figuram no registro Líber sclavorum de 1458 que enumera todos os escravos um por um, por cada senhor, e que Domenico Gioffré utiliza para sua avaliação estatística da população servil na cidade e o estudo de sua evolução. Estas isenções fiscais reencontravam-se certamente então em quase todas as cidades.
Podemos imaginar cada mosteiro, o bispo, os cônegos da catedral, os padres das paróquias, servidos por grupos de escravos, homens e mulheres, mais ou menos numerosos, como eram em outros lugares, nas regiões situadas mais ao norte, por irmãos laicos ou domésticos livres?
Em Sevilha, os eclesiásticos rodeiam-se, para seu serviço pessoal, ainda mais talvez para a manutenção da comunidade e as construções e reparações dos edifícios, dum número muitas vezes espantoso de escravos, na verdade batizados, mas ainda reduzidos a condição servil. Em 1525, uma centena de escravos pertencem diretamente ao arcebispo, sem contar os dos dignatários do cabido, do deão, dos administradores – o Pertiguero, também o chantre -, simples cônegos, tal como Sancho de Matienzo, comprador de vários Negros de África, que acabou por fazer comércio deles e por enviar todo um contingente para as Índias Ocidentais. Aquele outro liberta à sua morte cinco escravos, e este outro seis. Este meio canônico, demasiadamente mal conhecido dos historiadores das sociedades urbanas, afirma-se por todo o lado como um grupo social particularmente rico e influente, bastantes ligado às melhores famílias da aristocracia. Alguns cônegos possuem vários servidores submetidos, não somente na catedral mas também em todas as outras colegiais, assim na de San Salvador cujos cônegos, também eles, libertam seus domésticos por testamento. Nas calle de lãs Gadas, mercado habitual para os cativos trazidos de África, vê-se também, entre os compradores, bispos das cidades por vezes afastadas de Sevilha, assim como arcediagos das grandes igrejas da própria cidade ou das cidades dos arredores.
Os conventos, sem dúvidas por causa da importância dos trabalhos domésticos e das obras comunitárias, não deixam de manter dentro das suas paredes numerosos servidores cativos, quer adquiridos no mercado, quer a maior parte das vezes trazidos pelos frades ou pelas freiras por ocasião de sua entrada na ordem, quer ainda deixados em doação pelos fiéis. Alguns trabalham fora, outros tem de respeitar a clausura.
Menos ricos certamente, os simples padres de pequenas igrejas, curas ou capelães, tem do mesmo modo em sua casa, segundo os seus meios, um dois, e mesmo três escravos, que os ajudam também a manter a igreja e os seguem nos seus deslocamentos.
Assim as sociedades das gentes da Igreja, a diferentes níveis de fortuna, de prestígio e de atividades, concebem pouco o serviço doméstico da coletividade fora da via da escravatura: nem governantas, nem domésticos livres, nem irmãos laicos.
Os mosteiros portugueses mantinham estritamente em dia listas, ou melhor, genealogias dos seus escravos que indicavam muito precisamente o seu número, com os nomes, as filiações e as profissões. Estas listas, conservadas ( Genealogia sarrecenorum ...), mostram grupos de várias dezenas de escravos por vezes, muito ocupados na cozinha, na guarda dos rebanhos e em todo o tipo de trabalhos ou de ofícios para a conservação das construções ou dos utensílios: pedreiros, carpinteiros, vidreiros, ferreiros, outros ocupados no fabrico das telas e dos panos.”
(Heers, Jacques; Escravos e servidão doméstica na idade média, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1983, pg. 79-81)
A documentação apresentada por Heers é longa e apresenta inúmeros episódio onde Igreja e escravidão são atores indissociáveis da narrativa histórica medieval. È interessante perceber que os membros do clero que, dentre outras funções espirituais estava a de evangelizar, negavam-se de fazêlo quando isso implicasse na perda de seus escravos. Visto existirem leis em certas cidades medievais que vieram a coibir a escravidão de cristãos, a conversão de não cristãos ao cristianismo mediante o batismo, imediatamente os tornava livres, desta forma, nos lugares onde esta lei secular vigorava a conversão era algo que a Igreja evitava entre seus cativos, mesmo que isso implicasse na perda de suas almas. Entretanto, existiam lugares, e esses eram a maioria, onde as leis ordinárias eram indiferentes quanto a crença de seus escravos, podendo estes ser cristãos ou não.
“Com efeito, o batismo não trás nenhuma outra consolação no imediato do que espiritual. O escravo tornado cristão faz parte da comunidade de fiéis, sente-se talvez menos estrangeiro, melhor reconhecido, e menos reconfortado pela solidariedade da oração e pela assistência espiritual dos padres. Pratica a mesma religião que os senhores, a maior parte das vezes nas mesmas igrejas. Não são elementos de modo algum negligenciáveis. Mas a condição jurídica e material destes neófitos não muda por isso, em todo o caso de imediato.
O escravo batizado permanece escravo: a doutrina da Igreja, a das diversas autoridades, por exemplo nas cidades da Itália, assim como a opinião pública nunca variaram neste ponto. Sachetti, por 1370, di-lo muito claramente, sem nenhuma nuance e mesmo com uma dureza pouco comum, nos seus sermões: o mesmo afirma, que “batizar um boi”.”
(Heers, Jacques; Escravos e servidão doméstica na idade média, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1983, pg.85)
A discussão teórica relativa a escravidão não está circunscrita a partir dos séculos XVI, com à escravidão dita moderna, ou ainda com os pensadores iluministas dos séculos XVII e XVIII, e nem mesmo apenas aos cientistas sociais do século XIX. Aristóteles, Filemom, Sêneca, São Paulo, Gaio, Ulpiano, Agostinho e Clemente de Alexandria são exemplos de quão antiga é a questão da escravatura enquanto instituição.Sendo a Igreja conivente e atuante quanto ao regime escravista, havia a necessidade de justificá-lo ética e religiosamente a fim de legitimá-lo.
Sendo a Igreja detentora do discurso ideológico que condicionava a visão de mundo do homem medieval caberia a ela prover tal justificativa. Os chamados Padres da Igreja, dos quais se destaca Agostinho, postulavam que os escravos estavam dentro de uma ordem natural da qual a divina providência era fonte ordenativa. O dogma do‘estado de graça’ conferia a existência de homens que haviam sido eleitos por Deus, e desta forma não estariam sujeitos à escravidão, pois a situação de ser um escravo implicava na desaprovação divina pelos pecados do indivíduo e sendo sua situação uma punição por estes. Esta idéia está presente na obra de Agostinho “Cidade de Deus”,Livro V e capítulo XI; Livro XIX e capítulo XV; o que é corroborada quase um milênio depois por Tomás de Aquino em sua obra “Sumula Teológica” Parte I da 2ª Parte, Questão 96, artigo IV. Contudo Agostinho cai em contradição quando na “Cidade de Deus” no Livro IV e capítulo III diz haver escravos bons e senhores maus. Sendo assim, a explicação anterior não justifica a situação do escravo.
A ética cristã é deontológica e universal. Os preceitos do Cristo e da caridade cristã são válidos em qualquer época e local e o contrário disso não justifica nenhuma tentativa de coerção de um homem sobre outro homem. Contudo, a Igreja na Idade Média legitima a coerção de um ser humano sobre o outro postulando ser detentora e porta voz dos ditames divinos e como Deus havia predestinado alguns para tal situação caberia a esses aceitar sua situação pois essa nada mais era que uma situação de um estado pecaminoso.


































sexta-feira, 18 de abril de 2008

A Hegemonia dos Estados Unidos da América

O Artigo publicado anteriormente foi sem título. Em tempo está sendo enviado o mesmo.
RESUMO

Os E.U.A . nascido sobre pressupostos iluministas reinvindicam a si o “Direito Divino”, pressuposto utilizado pela monarquia absolutista européia para justifiar-se como potência mundial. Desde seu nascimento, esta nação ostenta um pretenso “Destino Manifesto”, do qual caberia a si a obrigação de guiar as nações da humanidade. No transcorrer de sua História os E.U.A . tem se esforçado em fazer deste discurso uma realidade. Sua história é marcada de intervenções nos países latino-americanos, intervenções estas de ordem política, financeira e até mesmo utilizando-se de armas como garantia de sua vontade e interesses. A análise histórica demonstra que esse “Destino Manifesto” nada mais é do que um espírito beligerante e dominador do qual se utiliza afim de garantir sua hegemonia na América Latina.

Embora a hegemonia dos Estados Unidos da América seja questionada por seus opositores, é inquestionável tratar-se de uma realidade. Porém, mesmo não podendo negar esta hegemonia pode-se refletir sobre esta. Quais são a origem desta? Sobre que pressupostos está ela alicerçada? São estes pressupostos legítimos?
O artigo que segue em sua maior parte narrará momentos históricos em que os E.U.A . fizeram valer no continente americano sua vontade. O momento em que essa hegemonia é questionada. Enfim, utilizar-se da História como objeto reflexivo. Não tem-se aqui a pretensão de esgotar o assunto, tanto porque não seria possível aqui aborda-lo em sua plenitude.

O pensamento Liberal do século XVIII serviu de embasamento teórico para a Revolução Americana em 1776. Desde o seu nascedouro os E.U.A . não tem se furtado a submeter à prova empírica este mesmo pensamento. A liberdade individual, o direito à propriedade, bem como a meritocracia são as pedras angulares do sistema governamental e do regime implantado em solo norte-americano desde então.
Contudo, a visão americana às “liberdades”, amplamente anunciadas por esta nação, como um arauto proclamando, não apenas sua “salvação”, mas de toda a humanidade, é extremamente particularista, tendenciosa e ainda, parcial. Tal premissa não é disposta pacionalmente, antes sim fruto de reflexão, a qual permite formular tal juízo de valor.
O texto White Jacket, escrito em 1850 por Herman Melville (também autor de Moby Dick) escreveu:
Nós americanos, somos o povo peculiar, escolhido- o Israel de nosso tempo; carregamos a arca das liberdades do mundo (...) Deus predestinou, e a humanidade espera grandes feitos da nossa raça; e grandes coisas sentimos em nossa alma. O resto das nações precisa, brevemente, estar na nossa retaguarda. Somos os pioneiros do mundo; a guarda avançada mandada através da terra virgem de coisas não experimentadas, para abrir no Novo Mundo um novo caminho que é nosso(...) Num período em que outras nações não fizeram senão balbuciar, nossa voz profunda é ouvida longe. Por longo tempo fomos céticos a respeito de nos mesmos e duvidamos se realmente o Messias político havia chegado. Mas ele chegou em nós, como se não tivéssemos feito senão dar expressão oral às suas inspirações.(MELVILLE apud JUNQUEIRA, 2001, p 37,38)

Percebe-se neste texto um tom bairrista, ufanista, ou melhor, em linguagem acadêmica, etnocentrista. Esses pressupostos messiânicos não são meramente a opinião de um indivíduo específico, antes sim, o pensamento de uma nação sobre si mesma. Prepotente? Arrogante? Os fatos falam por si.
Os tentáculos norte-americanos, no transcorrer histórico, chega ao ponto de abrangência mundial. Entretanto, como afirma o título deste artigo, o mesmo se aterá à América Latina. A primeira referência histórica descrita neste presente texto é tocante ao ano de 1836, quando o México proclama uma constituição centralista.. Neste contexto o Texas era parte integrante do território mexicano, no entanto havia grande densidade de colonos ‘norte-americanos’. No momento da proclamação da constituição em questão estes colonos sentiram-se prejudicados por esta, principalmente pela questão escravocrata. Ocorre então uma rebelião e desta saem vitoriosos os americanos, surge então uma nova República, a qual posteriormente é anexada aos E.U.A . 1 O texto a seguir dá a visão norte-americana sobre este fato, bem como sobre sua política em geral.
Pois bem, se necessitaram outras razões para justificar que agora eliminaremos o problema da anexação do Texas com o das mesquinharias de nossas antigas dissenções partidárias e o elevemos ao nível que lhe corresponde, que é dos altos e amplos objetivos nacionais, seguramente as acharemos, e em abundância, no modo como outras nações se propuseram intrometer-se neste assunto, interpor-se entre nós e os que são propriamente parte do assunto, em um espírito de interferência hostil para conosco, com o objetivo confesso de modificar nossa política e prejudicar nosso poder, limitando nossa grandeza e impedindo a realização de NOSSO DESTINO MANIFESTO que é estendermo-nos sobre o continente que a Providência fixou para o livre desenvolvimento de nossos milhões de habitantes, que ano após ano se multiplicaram.(O’ SULLIVAN apud OSCAR, 2000, p 250 – o grifo é meu)

Este fato, a anexação do Texas, mostra claramente uma política expancionista dos E.U.A . Após esta anexação, a expansão rumo ao Oeste, que, ao contrário das produções cinematográficas referentes à época costumam frisar, não eram terras de ninguém, tanto porque as terras que não pertenciam aos mexicanos pertenciam aos indígenas. No cumprimento do “Destino Manifesto”, em 1850, a Califórnia já era um estado integrante da União americana.
A dubiedade do discurso americano referente às liberdades é nitidamente percebida no axioma da Doutrina Monroe: “ A América para os americanos.” Em um primeiro momento parece ser um grito libertário frente ao contexto emancipatório vivenciado à época nas Américas. As colônias americanas da Europa estavam neste momento passando pelo processo libertário. Ao formular a premissa maior desta Doutrina estavam afirmando que a América não mais pertencia à Europa e com tudo o mais que isto implicava. Estava-se afirmando que o poder neste continente deveria e seria exercido por americanos natos. Ou seja, representava as liberdades postuladas pelo Iluminismo. Contudo, ao se colocar esta doutrina frente aos fatos é notório o tendencionismo da mesma, pois a América seria dos americanos, portanto os fatos perguntam: que americanos? E eles mesmos responde: os dos E.U.A . Aqueles que advogam ser o “povo eleito”, possuir um “destino manifesto”, portanto, caberia a este “povo eleito” guiar o continente americano através das “liberdades”. Em vista disto, a Doutrina Mouroe, talvez, dentro de uma visão radical, em vez de uma expressão de apoio às nações emancipatórias da América, é sim um ultimato, no qual os norte-americanos apresentam suas credenciais de liderança em vista disto, a América será dos “Americanos”.
O Dolar tem comprado do “Destino” esta “Manifestação”, quer pela influência econômica, ou quando esta apenas não basta, pela imposição de armas, de maneira direta ou indireta. A América Central com sua violenta história política comprova esta afirmativa. A invasão de Granada em 1983, as intervenções em El Salvador na década de 1980 e a invasão da Nicarágüa sandinista são exemplos do exercício de liderança do “povo eleito” pelo “Destino Manifesto”.
Desde o “apagar das luzes” do século XIX os E.U.A . já haviam se projetado como potência internacional, por ocasião da Guerra hispano – americana de 1898, onde colheu imenso superávit político e econômico. Ao contrário da América Latina, que continuava ainda portando-se no mercado internacional como uma colônia, a diferença é que a “metrópole’ agora não era mais a Europa e sim os E.U.A . , este por sua vez põe-se no centro do capitalismo internacional, para tanto revigora a Doutrina Mouroe.2
No governo de Theodore Roosevelt, de 1901 à 1909, cria-se o Corolário Roosevelt para a doutrina Mouroe , mais precisamente em 1904.
(...) a adesão dos Estados à Doutrina Mouroe pode forçar os Estados Unidos, embora com relutância (...) para o exercício de um poder de política internacional (...) Nossos interesses e os de nossos vizinhos do sul são em realidade os mesmos. Eles possuem grandes riquezas naturais (...) Eles só merecerão a nossa interferência em último caso e então apenas se for constatado claramente que sua inabilidade ou fraqueza para executar a justiça em casa e no exterior, tenha violado os direitos dos Estados Unidos ou incitado a agressão estrangeira em detrimento do conjunto das nações americanas.( Trecho da mensagem anual de Theodore Roosevelt ao Congresso em 6 de dezembro de 1904. MORRIS apud OSCAR, 2000, p 472 )

Desta maneira inaugura-se o “big stick” , política intervencionista norte-americana. Dentro desta, a possibilidade do uso de armas não só existe como a “legitima”. O revigoramento da Doutrina Mouroe , por onde os E.U.A . chamam a si a responsabilidade da manutenção da ordem nas Américas, serve como medida legitimatória da política do “big stick”, medidas estas já tomadas tanto em Cuba em 1901 como no Panamá em 1903, bem como qualquer outra medida intervencionista que viesse a ter.3
Entretanto, após 1929, com o “crash” de Nova York , quando o prejuízo econômico não se ateve ao território dos E.U.A ., antes sim, estendendo-se pelo mundo e atingindo a América Latina em cheio, o sentimento anti-americano era corrente. Neste momento cabe aos americanos do norte um discurso conciliatório com seus vizinhos ao sul, o qual é realizado com a inauguração da Política da Boa Vizinhança no governo de Franklin Delano Roosevelt .
No campo da política mundial, quero consagrar este país à Política da Boa Vizinhança – o vizinho que respeita firmemente a si próprio e por isso, pratica o respeito aos direitos dos outros - o vizinho que respeita suas obrigações e a santidade dos compromissos assumidos.(Trecho do discurso de posse de Franklin Delano Roosevelt, em 04 de março de 1933. BILLINGTON apud OSCAR, 2000, p 477)

A hostilidade entre América Latina e os E.U.A . já era uma realidade mesmo antes disto. E até mesmo instituições internas aos E.U.A . faziam pronunciamentos contrários ao “big stick”. “Nenhum Estado tem o direito de intervir nos assuntos de outros Estados.”4
Findando a Segunda Guerra Mundial os E.U.A . saem desta mais fortes política e economicamente do que nunca antes. Entre Conferências e Declarações, como a de Lima,1938, por exemplo, mesmo antes da guerra os americanos confirmavam sua já “inquestionável” liderança nas Américas. Entretanto, eis que surge no cenário mundial a “Guerra Fria”, a qual polariza o mundo em dois blocos, os liderados pelo capitalismo norte-americano e pelo bloco liderado pela U.R.S.S.,ou seja, o bloco comunista. Essa bipolarização mundial é dada como iniciada pela Doutrina Truman em 1947.5 Sendo o comunismo uma ameaça ao “american way of life”, os E.U.A .mantém-se atento a qualquer possibilidade desta ameaça vir a se sedimentar no continente americano. Contudo isto não impede que em 02 de Janeiro de 1959, em Cuba, uma revolução comunista saísse vencedora e assim levando às Américas a ter encravada dentro de seus limites um Estado Socialista e além do mais, muito próximo geograficamente aos E.U.A . Desta maneira então, Cuba estaria sempre implicada nas discussões referente à “Guerra Fria”, pois Cuba a partir de então estava alinhada com a U.R.S.S. Isso fica evidente quando em 1961 os cubanos rompem relações diplomáticas com os E.U.A . , assim demonstrando clara evidência de independência. Mesmo tendo tratados firmados com a U.R.S.S., Cuba manteve sempre sua posição de independência política. Posição evidenciada em sua postura de propagar o modelo comunista a toda à América Latina, mesmo quando o Kremlin se posicionava contrário aos termos de Havana.6 Em 1964 a OEA (Organização dos Estados Americanos) reforçou um embargo comercial e político contra Cuba. Entre idas e vindas nesta relação, os E.U.A . manteve-se sempre em alerta aos ditames oriúndos da ilha caribenha.
Se a década de 1970 é marcada por um afrouxamento da política intervencionista norte-americana nas Américas, a década seguinte é caracterizada por uma política marcada por intervenções . Em virtude destas o período é chamado por uns de “o novo big stick”. As acusações e intimidações de Washington às “repúblicas de bananas” tornaram-se rotineiros no governo de Ronal Regan. Em agosto de 1982 os E.U.A . , através de sue legislativo aprova a emenda Symms, a qual proclamava que a grande nação americana estava disposta a “impedir por quaisquer meios necessários, inclusive pelo uso de armas, a proliferação do regime existente em Cuba (...) impedir a criação, ou o uso em Cuba, de um potencial bélico sustentado do exterior e que ameace a segurança dos Estados Unidos; colaborar com a OEA, e com os cubanos amantes da liberdade, para apoiar às esperanças do povo cubano à autodeterminação.”7
Entretanto, o período entre décadas, que marcaria o final da década de 1980 e o início da década de 1990, seria marcado por acontecimentos que tornaria todo o discurso anticomunista sem sentido, pois, discussões ideológicas à parte, o comunismo teve seu fim com a queda do muro de Berlim, em 1989.Portanto, o discurso americano, no qual os E.U.A . era apresentado como mantenedor das liberdades nas Américas não mais era factível. Então, como continuar a manter a hegemonia na América Latina sem que houvesse uma contestação efetiva desta mesma liderança?
De 1970 à 1990 a América Latina deparou-se com “uma sucessão de graves problemas de ordem internacional: os dois choques do petróleo, a alta taxa internacional de juros, a queda dos preços das suas matérias primas.”8 A dificuldade latina-americana de impor-se no mercado internacional é enorme, dificuldades apresentadas nas formas de restrições à empréstimos e no aumento protecionista da América do Norte, bem como no mercado europeu. O fenômeno da globalização e a política neoliberal são assuntos “da hora”, em 1990. Neste momento, o processo econômico na América Latina é a abertura de suas respectivas economias ao investimento e aos produtos estrangeiros. Embora sabedores do que fazer, de que maneira os Estados latino-americanos poderiam fazer frente às potências econômicas, principalmente aos E.U.A .?
A maximização dos resultados de uma abertura da economia supõe a livre circulação de bens e de capital a nível internacional. Em outras palavras, depende do bom funcionamento de um sistema comercial e monetário de caracter multilateral, a cuja normas todos os países – de maior ou menor peso econômico – efetivamente se submetam. O sistema multilateral, sobretudo no campo do comércio, vem sendo, no entanto, sujeito a fortes tensões. Essas tensões se originam essencialmente do fato de que os Estados Unidos, maior parceiro do mundo e principal avalista do sistema, vir recorrendo de modo crescente ao protecionismo, sob forma especial de barreiras não tarifárias e também de manipulações cambiais; tudo isso para tentar corrigir déficit de comércio exterior gerados basicamente pela falta de ajustes estruturais internos suscetíveis de restabelecer a competitividade internacional da economia norte-americana. Mais sério ainda é o risco de uma fragmentação do sistema multilateral de comércio que possa decorrer de uma opção dos Estados Unidos por acordos preferenciais, de corte bilateral ou regional. A decisão norte-americana de estabelecer em 1988 com o Canadá, por proposta deste, uma área de livre comércio foi entendida como indicação preocupante de que a opção já teria sido feita.9
Portanto, no início da década de 1990 estava em franca formação a idéia de “mega-blocos” econômicos. A configuração contextual da Europa sob a batuta da CEE, a liderança asiática do Japão, bem como a confluência do México e do Canadá em torno dos E.U.A . na América do Norte, demonstravam que dentro daquele contexto a multipolaridade econômica era inevitável.
Os americanos entretanto estavam decididos a manterem sua hegemonia na América Latina, agora em um “quadro fluído e complexo de desideologização das relações internacionais e de rearrumação das relações de poder no plano econômico internacional.”10 Em 27 de junho de 1990 ocorre em Houston, E.U.A . uma reunião do G8 no qual o presidente Georg Bush – pai – faz o anúncio do “Empreendimento para as Américas”, o qual pegou desprevenidos os governantes latino-americanos. Tal anúncio ficou sendo denominado de “A iniciativa Bush.”11
A percepção do governo americano da nova configuração econômica que estava em formação, ou seja, os “mega–blocos” econômicos fez com que Bush tomasse a postura adotada nesta reunião de cúpula.
O anúncio da “Enterprise for the Américas” não foi precedido de consultas prévias na região, assumindo cunho inegavelmente paternalista. O governo norte-americano pareceu, aliás, mais preocupado em buscar um “endosso” ou “reconhecimento” pela CEE e pelo Japão da condição de preeminência norte-americana no continente. Num contexto de formalização de áreas de influência econômica que parecem emergir da Cúpula de Houston, “a iniciativa Bush” pode ser interpretada como uma tentativa de demonstrar, para os latino-americanos de que os Estados Unidos reconhecem ter responsabilidades regionais, e, para as potência econômicas extra-regionais, de que estariam dispostos a exercer tais responsabilidades, se necessário, de forma preferencial.12
Correntes políticas internas dos E.U.A . sustentam um posicionamento de revigoramento dos laços com a América do Sul, cujos países consideram promissores. Dentro de um pensamento paternalista e intervencionista, visam promover o combate ao narcotráfico e a preservação do meio ambiente. Desta maneira os E.U.A . acumulariam dividendos, pois, dentro deste pensamento a contrapartida seria “simples garantias de manutenção do grau de abertura de seu mercado para produtos latino-americanos e receberiam em reciprocidade um acesso preferencial no mercado dos países latino-americanos para as mercadorias, serviços e investimentos.”13
A criação do Nafta, área de livre comércio da América do Norte, E.U.A ., Canadá e o México, é um precedente que fomenta o surgimento da Alca, área de livre comércio das Américas. A intenção americana é clara, pois o interesse político e econômico é manter-se como potência de vocação mundial.
Já que, com o final da “Guerra Fria”, os E.U.A . tem o seu discurso praticamente limitado dentro da área econômica, pelo menos no início da década de 1990, este tem feito o máximo dentro destes limites, considerando-se seu “Destino Manifesto” intervencionista. No período em questão os americanos interferiram de maneira direta no México. Ao contrário da década anterior na América Central, onde a intervenção se deu pelas armas, desta vez, como o campo de poder havia se alterado para à área econômica, esta intervenção se deu justamente nesta área.
O México, ao passar por sua maior crise financeira de sua história é amparado patriarcalmente pelos E.U.A . Muitos haviam se perguntado o que os americanos ganhariam em prestar ajuda financeira de maneira solícita com que esta ajuda foi posta em prática, bem como sua presteza nesta. Percebe-se à posteriori que os E.U.A . estavam na verdade era salvaguardando o modelo econômico do qual o México era representante e os E.U.A . seu “top de linha”. Portanto, não pareceria atraente aos olhos do mundo, ver um modelo econômico, o qual propalava ser a solução para os males da humanidade, estando este modelo em ruínas. Então, “salvando” o México desta terrível crise, “enxugando” seqüelas oriundas do “Efeito Tequila” os americanos estariam na verdade salvaguardando sua própria imagem de líder mundial.
Atitudes diferentes para épocas diferentes. O contexto histórico das décadas anteriores, onde o discurso anunciava um “ terror comunista” e “pedia” medidas neste sentido. Enquanto o “fantasma” do comunismo rondasse a América Latina, os E.U.A . não se furtariam de medidas extremadas para impedir qualquer possível avanço deste. As ditaduras que se instalaram nas Américas nas décadas de 1960 e 1970 tiveram apoio direto dos E.U.A ., o qual até mesmo formou “intelectualmente” os oficiais envolvidos nos golpes que deram origem a estas ditaduras. Porém, com os ventos soprando em outras direções, esse mesmo apoio foi retirado, e a década de 1980 foi um período de transição intestinal na América Latina.
Atualmente a principal oposição aos E.U.A . origina-se de Caracas, Hugo Chávez, presidente da Venezuela apresentou-se no cenário internacional da América Latina como pretenso sucessor a Fidel Castro. Chávez ,com seus discursos incendiários realiza pronunciamento radicais contra o sistema norte-americano e principalmente ao presidente Georg Bush – filho. Caudilho de tradição caribenha, Chávez usa o lucro farto do petróleo para financiar a propagação de suas idéias nos países vizinhos. Na tentativa de marcar sua oposição e ser notado internacionalmente, este presidente “ditador”, por enquanto com aspas, aliou-se a muçulmanos fanáticos do Irã, empurrando assim a América Latina para dentro do conflito no Oriente Médio.
O Equador tem Rafael Correa como seu presidente, o sétimo em dez anos. Correa é seguidor de Chávez e já anunciou sua intenção de rescrever a Constituição sem levar em conta o Congresso Nacional. Na Bolívia Evo Morales, denominado pela oposição como clone de Hugo Chávez, pois possui, assim como o “mestre”, uma postura populista, toma frente em movimentos indígenas, sendo ele mesmo um, desapropria investimentos estrangeiros e com isso acaba isolando o país cada vez mais, sendo a Bolívia o país mais pobre da América do Sul. A influência de Chávez estende-se até mesmo a Argentina , onde Néstor Kirchner, tido como excêntrico e populista bajula Chávez, de quem solicitou empréstimo.14

A Revolução Americana pode ser chamada de uma revolução burguesa pois nasce de ideais burgueses – O Liberalismo. “ É da liberdade absoluta, da justa e verdadeira liberdade, da liberdade igual e imparcial, que temos necessidade.” (POPLE – in Prefácio, Carta sobre a Tolerância, de J.Locke,1689 apud SCHILLING, 1999,p 91 ) Entretanto, mesmo nascendo sob os ideais libertários do Iluminismo, sua história é marcada de contradições se levado em conta tais ideais. Inumeráveis questões surgem, principalmente: Que liberdades seriam estas? Seriam estas universais ou restringiriam-se a determinados grupos, povo ou nação? Como então ser parcial aquilo que nasceu absoluto?
A História mostra que os interesses corrompem as Idéias, ou ainda, que estas já nascem corrompidas, e se nascem, é para “justificar” um determinado “status qüo”.
De todos os princípios do Liberalismo cabe destacar a meritocracia. Dentro desta óptica burguesa quem não tem competência não se estabelecerá. Portanto, os E.U.A . fazem desta máxima um motor propulsor o qual impulsiona esta nação a ser o que é, a “personificação” de uma hegemonia, não só nas Américas como também frente ao mundo.
Os ideais iluministas surgem em contraposição ao Absolutismo, onde a manutenção do poder monárquico se dá através de um discurso mítico. O poder Real, segundo tal discurso, é uma Dádiva Divina, uma Concessão Divina, um Direito Divino dado a um ser ímpar, o qual poderá transmitir a seus herdeiros este Direito Divino de governar e por ser este uma “Manifestação” de Deus, é de caráter Absoluto, inconteste.
Os E.U.A . subvertem o discurso, subvertendo assim a História. Ao mesmo tempo que surge como modelo político de vanguarda no século XVIII, contrapondo-se as monarquias absolutas da Europa, sob a bandeira da Liberdade, na construção de sua Identidade, que segue imediatamente após sua independência, a identificação “eleita” que se dá é a do “Povo Eleito”, “guardião das Liberdades”. “Povo Eleito” no sentido de que caberia a esse guiar a humanidade e os E.U.A . não poderiam furtar-se de obedecer esta “Manifestação Divina”.
Em vista disto é perceptível a contradição desde o seu nascedouro. Pois enquanto se apresenta em contraponto a um regime ultrapassado, utiliza-se da lógica que mantinha este regime sob à coroa, para assim legitimar sua então pretensa vocação de liderança mundial. A História então mostrou que a Identidade nada mais é que uma construção social. Os E.U.A . construíram a Identidade que “construíram”, pois fizeram valer, sob contestação ou não, seu “Direito Manifesto”, servindo hoje como liderança efetiva e inconteste não só na América Latina como no mundo.
O presente artigo citou vários momentos em que os E.U.A . interviram na América Latina e como esta nação “orquestrou” o tom político, adequando este ao contexto de cada momento. Mostrou também que estas intervenções não ocorreram impunemente, sempre houve quem manifestasse oposição ao “americam way of life”. Fidel Castro ontem e Hugo Chávez hoje, são exemplos de oposição à hegemonia dos E.U.A . na América Latina. Além disto, se prestou a uma reflexão sobre o “Destino Manifesto”, que na verdade nada mais é do que um espírito beligerante e dominador.

" DEMOCRACIA AO MOLHO CURRY"

No transcorrer do semestre 2007/1, na disciplina de História da Ásia I , o presente aluno traçou paralelos históricos com determinadas teorias. Primeiramente com o estruturalismo francês e posteriormente com a filosofia hegeliana.
Foi na época elaborado um ensaio onde procurou-se caracterizar os zamindars. No esforço de apresentar a filosofia de Hegel, utilizou-se deste personagem histórico da Índia como elemento argumentativo cuja conclusão inegável é o determinismo.
O texto utilizado como referência no que concerne aos zamindars foi: “As origens da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno.”; de Barrington Moore Jr. Este pesquisador além de descrever o contexto histórico, tece alguns juízos de valores. Fato que mais o intriga é como a Índia passa de uma burocracia agrária despótica para uma sociedade democrática, sem no entanto passar por uma revolução burguesa, industrial ou qualquer coisa que o valha no direcionamento de um fator que viesse desenvolver o capitalismo por vias semelhantes ao seu surgimento europeu.
Os ingleses chegam à Índia num primeiro momento, utilizando-se de um termo de Barrington, como piratas e encontram um regime decadente, o império mongol, em meados do século XVIII. Aquilo que começa de uma maneira, pode-se dizer até inconseqüente, devido ao fato dos ingleses expandirem-se cada vez mais seu plano de ação sobre o território indiano, torna a estes “senhores” da Índia.
Diante da constituição já sedimentada de sua hegemonia a questão era transformar a Índia de uma maneira tal que fosse possível nela a implantação empírica do discurso capitalista inglês. Nesta tentativa os ingleses utilizaram-se de um elemento recorrente no regime de dominação anterior – os zamindars, dando a estes não apenas a concessão de terras, mas a prerrogativa de proprietários.
Embora a dominação inglesa na Índia não possuísse a característica predatória do império mongol, pois a intenção era transformá-la em um grande mercado consumidor, esta mesma intenção gerava a conseqüente cobrança de impostos e o desistímulo à produção artesanal, característica não só econômica como sobretudo cultural.
Os ingleses, no exercício de sua dominação, além de sua intervenção política direta em solo indiano, exerceram uma tentativa de intervenção cultural. A proibição do sati é um forte exemplo. A morte da viúva em uma pira, onde o falecido esposo seria cremado era um costume milenar na Índia, costume este proscrito pelos ingleses.
Como as diferenças culturais eram gritantes e ainda, a “natureza” dessa cultura, a indiana, impedisse o franco desenvolvimento econômico, os ingleses exerciam forte pressão em modificar este sistema cultural. No exercício desta pressão de aculturação eles encontram uma forte resistência indiana.
Denys Cuche em sua obra, “ A noção de cultura nas ciências sociais” ao referir-se à dialética cultural que envolve o encontro de culturas, lança luz sobre o alicerce em que este encontro se desenvolve. Lembra este autor da existência de elementos culturais de ordem exógenos e os de ordem endógenos. E segue ele, que um elemento cultural exógeno somente é assimilado em determinada cultura quando os elementos endógenos permitem que este “corpo estranho” venha configurar, agora já como parte integrante desta dada cultura.
No entanto, no contato anglo-indu a aculturação não ocorreu dentro de um padrão harmonioso. As imposições dos ingleses aos indianos não ocorreram impunemente. A Revolta dos Cimpaios, no início da segunda metade do século XIX é uma prova desta afirmativa. O desejo de retorno aos costumes antigos era o fator determinante desta insurgência de cunho muito mais cultural do que propriamente político; isso dava a Revolta a peculiaridade de ser não revolucionária e sim de ser reacionária.
A origem das castas como divisor social e sua explicação para tanto, como sendo estas advinda da religiosidade politeísta hindu, onde a reencarnação é “dogma” inconteste desta crença, pode explicar a estagnação econômica da Índia. A resignação do indivíduo relativo ao seu contexto social, ou seja, relativo a casta a qual pertence, com todo os seus ônus, é imperativo para que na vida vindoura este indivíduo possa “vir” em uma casta superior. A observação de respeito e notoriedade dada de uma casta subalterna a uma outra superior é regiamente cumprida e para tanto existem uma série de reguladores culturais.
Entretanto, o sistema de castas tornava-se um impedimento para o desenvolvimento econômico da Índia, e a Inglaterra fazia o máximo no sentido de subverter este sistema , enfrentando em virtude disto franca oposição dos indianos que, sob liderança de Ghandi, na década de 1940, resistem e vencem a ocupação inglesa.
A resistência orquestrada por Ghandi era insólita, por consistir em ser pacífica. Contudo, sendo uma resistência detentora de forte alicerce teórico, quando colocado sob prova empírica se mostrou eficaz. Resistir significava não compactuar com a situação vigente, portanto, caberia aos indianos se negarem a fazer parte da engrenagem que move um sistema capitalista, no caso específico não mais abrindo o “mercado” ao consumo de produtos ingleses. Atitude esta que tornou o empreendimento inglês na Índia sem sentido e culminou com a retirada inglesa do território indiano e a conseqüente vitória dos insurretos pacíficos.
Porém, mesmo que houvesse resistência cultural, uma contra-cultura, nenhum contato cultural conhecido até hoje mostrou-se imune à aculturação. No caso anglo-indu a Índia veio a conhecer um sistema de governo que nasce sobretudo deste contato, pois a democracia, sistema político vigente hoje na Índia não possui outra origem se não este processo de aculturação. Pode-se dizer que a Índia ficou com a democracia e a Inglaterra com o curry.
O curry, tempero essencialmente indiano, foi apresentado ao mundo pelos ingleses. A abertura dada pelos ingleses ao curry junto às mesas britânicas, o que significava uma abertura cultural, permitindo que um elemento exógeno participasse de sua cultura, o que tornou esse tempero picante popular não só ao paladar inglês como do mundo todo. Hoje o curry é tão inglês quanto a Torre do Big Bang. Cabe lembrar que embora o curry seja de origem hindu, a notoriedade da cozinha britânica sem o curry jamais seria a mesma, pois para o cozinheiro desavisado o curry é um condimento inglês, tamanha foi a assimilação cultural deste elemento.
Uma característica prezada por este aluno é buscar o “livre pensamento”. Portanto, quero aqui conciliar a filosofia hegeliana e o estruturalismo francês de Cuche. Em relação a este último as idéias concernentes a esta apreciação já foram explicitadas no transcorrer deste texto, porém, onde entra Hegel nisto tudo? Ora, Hegel é inserido no argumento que tudo o que se sucedeu na Índia e a maneira como tudo se deu foi incontestavelmente determinado pelo Absoluto. Premissa essa confirmada pela simples perplexidade de Barrington em constatar que a Índia possuía um sistema político, a democracia, sem no entanto ter passado por fases aparentemente necessárias para o estabelecimento de um governo democrático.
Segundo Hegel cada povo recebe a aptidão cabível ao seu grau de desenvolvimento. Portanto, foi determinado que a Índia seria uma democracia, de acordo com o seu desenvolvimento e o Absoluto utilizou-se do grau de desenvolvimento de outro povo para que este povo asiático viesse a ser detentor deste modelo político. Em contrapartida a Inglaterra ficou com o curry e a pecha de ter inventado a receita da “Democracia ao molho curry” apreciada na Índia.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

O SEXO PROÍBIDO VIRGENS, GAYS E ESCRAVOS NAS GARRAS DA INQUISIÇÃO

O livro de Luiz Mott, cujo título serve também a esta resenha, foi publicado em 1988 pela Papirus Editora, sediada em Campinas/SP e possui em sua 1ª edição 190 páginas. Luiz Mott possui uma extensa lista de títulos acadêmicos, entre estes consta o de Mestre em etnologia pela Sorbonne ( Paris ). Seguindo a risca o axioma antropológico: “ A sexualidade humana é fundamentalmente cultural.” ; o autor faz deste verdadeiramente sua máxima e utiliza-se da cultura material disponível para retirar do “submundo” acadêmico aquilo que, embora cultural e que, por ser desta maneira, faz parte do cotidiano do ser humano, contudo, o mesmo ainda é visto como tabu O SEXO. No intuito de contribuir para essa mudança, que já era sugerida em 1927 por um pioneiro da antropologia, B. Malinowski, que defendia a legitimidade de se estudar o homem nu, sem a folha de parreira, Luiz Mott lança luz sobre um assunto cujo conteúdo ainda não é de todo aceito como legítimo no meio acadêmico – o sexo , mais ainda quando se trata de uma variante considerada “proibida”, o homossexualismo. Porém, Mott dá seriedade ao assunto ao constituir-se sobre uma pesquisa de nove meses no Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa. Portanto, todos os relatos apresentados em sua obra estão documentados neste arquivo.
Se, nos finais do século XX, data em que o presente livro em questão foi escrito, o sexo ainda causava embaraços quando trazido a tona, potencialize-se a mesma situação no contexto dos séculos anteriores. A Igreja desde sempre foi uma grande reguladora dos ditos “prazeres da carne”, portanto, aquilo que estava sujeito às chamas do inferno no pós morte, ou seja, o pecador e seu respectivo pecado, com o aparecimento do “Horrendum Tribunalem”, o Santo Ofício ou ainda A Santa Inquisição, as chamas da fogueira estavam sujeitas a acomete-los ainda em vida. Como todas as denúncias, em tese, eram precedidas de um processo inquisitorial, Mott vasculha a Torre do Tombo em busca destes relatos, os quais encontra com minúcias de detalhes dos então “zeladores da moral”, que sequiosos de verem sentenciados aqueles que ousaram infringir as sagradas leis da Igreja.
Mott apresenta então uma variedade de relatos, nos quais encontra-se sobretudo práticas sexuais dos negros escravos oriundos do continente africano ou ainda, de seus descendentes já no Brasil. Relata também a prática do homossexualismo, tanto entre os negros bem como destes com seus senhores brancos. E aproveitando o ensejo, Mott constata que a contestação da virgindade mariana, dogma basal da Igreja, gerou processos inquisitoriais e ainda argumenta que este dogma foi e ainda é sustentáculo da moral cristã vigente.



INQUISIÇÃO

“As primeiras vítimas deste severo tribunal eclesiástico foram os Cátaros e Valdenses no sul da França, no século XIII, seguido dos Catarinos na Itália, dos Hussitas na Boêmia e a partir do século XVI, sobretudo dos mouros e judeus na península Ibérica.” A Inquisição em Portugal ganhou fama de ter sido mais amena, para os padrões inquisitoriais , mas pelo que consta em seus anais não era essa a impressão que causava em suas vítimas. No entanto, verdade seja dita, na Espanha a Inquisição possuía em seus róis uma lista de delitos religiosos que estariam sujeitos à fogueira muito maior do que o rol de pecados portugueses sujeitos a mesma punição.




CRIMES RELIGIOSOS
- Heresia
- Feitiçaria
- Blasfêmia
- Desvio sexual: adultério, sodomia (cópula anal tanto heterossexual quanto homossexual), bigamia, luxúria clerical, bestialismo, incesto, concubinato, estupro, masturbação e lesbianismo.
Embora todos esses crimes fossem sujeitos a castigos e torturas , segundo os registros processuais da Torre do Tombo, em Portugal, os crimes religiosos que efetivamente poderiam resultar em pena capital era a “sodomia perfeita”, ou seja, a cópula anal homossexual com ejaculação interna aquele que “usa do ofício de fêmea.” Ou ainda, em bom latim, “penetratio in vas posteriore cum seminis efusione.” Outros crimes sujeitos a mesma pena era a bigamia e a luxúria clerical.

O SEXO NA ÁFRICA OCIDENTAL

- Poligamia poligínica;
- Ritos de iniciação sexual seguidos de mutilação (circuncisão, clitoridectomia, infibulação e defloração com falo cerimonial);
- Adultério, homossexualidade, masturbação, divórcio e prostituição. A reação social de tais comportamento varia de etnia para etnia, indo da indiferença à repressão até coma pena de morte;
Enorme variedade de códigos morais.




O SEXO CATIVO

Torna-se inevitável não considerar a possibilidade da atividade sexual já no transporte dos navios negreiros. Todos eram transportados em naus onde ficavam amontoados corpo a corpo durante 40 a 50 dias, sendo suas únicas liberdades dar vazão a seus devaneios eróticos.
Além do sexo entre os próprios cativos, tanto heterossexual quanto e principalmente homossexual já que os homens eram maioria e a prática homossexual relativamente comum no continente africano, havia também o uso pela tripulação do navio de sua “carga”, para fins sexuais.
Já em sua chegada às Américas o componente sexual estava presente, pois os negros do sexo masculino eram escolhidos para compra em preferência à mulher e ainda o critério de escolha entre estes era o tamanho do membro viril, pois argumentava-se que quanto maior este fosse, melhor seria tanto sua capacidade de reprodutor quanto sua força hábil para a lida dos árduos trabalhos da lavoura .
Entretanto, assim como os senhores de escravos escolhiam suas negrinhas por seus atributos sexuais igualmente faziam aqueles que dos negros quisessem muito mais do que seus préstimos de sua natureza senhor/escravo. Nos registros encontrados por Mott em Lisboa encontra-se uma série de relatos que foram parar no Santo Ofício onde o “pecado nefando”, “o amor que não ousa dizer o nome”, a sodomia, a fanchonice entre outros nomes atribuídos dados pelos criativos relatores inquisitoriais a prática do homossexualismo era praticada.
Embora saiba-se que o homossexualismo era atividade corrente entre os escravos, os registros não conferem a estes sua maioria de processos. A Inquisição processou muito mais homens brancos, de posses ou não, do que escravos. Embora isso se explique, pois era interessante à Inquisição que o réu detentor de posses tivesse o veredicto de culpado, pois, neste caso, os bens destes reverteriam todos para à Igreja .
A ausência de um número maior nos registros, de homens negros acusados do “pecado nefando”, é explicada pela insignificância social apresentada pelos amantes não-brancos.
Muitos diante de uma acusação de tamanha conseqüências procuravam justificar-se utilizando-se para tanto dos mais variados subterfúgios .Desde de ter feito uso de “pito de Pango”, ou seja maconha, e assim não poder responder pelos atos cometidos sob o efeito desta ,o ainda de estar sob o jugo de um espírito maligno. Aparece em um dos registros até mesmo Satanás sendo acusado pelo ato do acusado. Mas quando o réu não conseguia aliviar-se da culpabilidade, os conhecedores dos processos inquisitoriais, alegavam não tratar-se de “sodomia perfeita”, pois não havia ocorrido a ejaculação no “vaso traseiro”. Essa alegação era sagaz e vital pois apenas isso caracterizava ou não a sodomia denominada perfeita e somente a esta estavam sujeitos os considerados culpados a arderem na fogueira.
A preocupação em organizar uma defesa em que o réu considerava-se culpado, porém com atenuantes era imprescindível aqueles que quisessem sair com vida diante da acusação apresentada. Isso se dava pois invariavelmente o suspeito era condenado e se esse negava-se em reconhecer a culpa a única maneira para salvar essa alma impenitente era purificando a esta pela fogueira. Portanto, justifica-se o fato da maioria apresentar-se diante da Inquisição como culpado tentando, no entanto, atenuar a culpa. Quando o escravo fazia parte do processo acusatório este processo poderia possuir uma ou outra característica. Sendo o escravo inscrito também como réu, o mesmo costumava responsabilizar seu senhor pela prática da qual originava-se a acusação. No entanto a acusação de sodomia poderia partir do escravo e nesta situação seria este apenas acusador das atividades pederastas de seu senhor, portanto o escravo seria, frente ao inquérito, apenas uma testemunha. Porém, esse tipo de processo carregava em si uma dúvida, que caberia a Inquisição julgar; estaria o escravo falando a verdade ou meramente acusando seu dono por uma vingança qualquer?
Como o escravo era antes de mais nada considerado uma “peça”, um investimento do qual o senhor almejava retirar deste o máximo possível de retorno financeiro através da exploração do trabalho do mesmo, perdê-lo significaria prejuízo. Portanto , quando um senhor de escravo vinha a descobrir que seu escravo era homossexual, a decisão mais freqüente era esconder esse fato, pois caso isso se tornasse público, o senhor deveria entregar o escravo à Inquisição para que esta tomasse as medidas adequadas quanto a “salvação” desta alma. Entretanto, tem-se registro de senhores que preferiram castigar seu escravo gay até a morte do que tolerar tal pecado sendo praticado sob sua seara ou ainda tratava-se de vendê-lo imediatamente afim de evitar o prejuízo.
As relações homossexuais eram de todas as ordens. Havia casos em que o espírito dionisíaco se fazia presente através de atividades de sexo grupal, masturbação recíproca, felação. Havia caso de relações sexuais fortuitas e ainda relações de ordem amorosa. Aparentemente esta é que causava maiores inconvenientes nas sociedades da época, pois além de ser uma atitude sexual reprovada, tanto secularmente quanto pela Igreja, pelo fato em si, quando tinha este componente agravante, de possuir caráter amoroso, isso constituía uma afronta maior à sociedade. Esta afronta se dava pelo fato de que uma relação desta ordem subverte a “ordem social”. Geralmente o senhor, ao se apaixonar pelo seu escravo autorizava a este ter atitudes que somente seriam possíveis diante de tal contexto. Comer na mesma mesa que seu dono ou usar calçados não eram prerrogativa dos cativos, no entanto estas regalias e muitas outras eram autorizadas pelos senhores apaixonados por seus escravos e a sociedade via nisto tanto mal quanto o ato “nefando” propriamente dito. Ainda mais quando nos jogos sexuais o “senhor” era o negro, e o homem branco, livre, senhor de fato e de direito do escravo tornava-se, neste jogo, submisso a este. Desta feita, o escravo tornava-se “senhor,” condutor sexual ativo. Isso insultava toda uma sociedade racista e sobretudo machista e patriarcal.
As negras lésbicas também não deixaram de se fazerem representar nos inquéritos da Santa Inquisição. Embora seus registros não sejam tão fartos quanto dos homens. O homossexualismo feminino foi muito menos perseguido do que o masculino, a tolerância para com estas mulheres constitui uma observação gritante na História, porém existiram casos de punições. A sodomia imperfeita, que dentro desta enquadrava-se também a mulher que fizesse uso da cópula anal, não foi punida igualmente que os homens sob a mesma acusação.
As demais práticas de ordem sexual que por ventura os africanos tivessem em seu continente de origem, quando aqui se fixaram, do tipo circuncisão ,enfibulação ou ainda clitoridectomia foram reprimidas, pois não constam nos anais portugueses como sendo praticadas no Novo Mundo.
O casamento foi uma das imposições da Igreja aos negros na tentativa de reprimir tais práticas consideradas não usuais e ainda que constituíam pecado.




DESVENTURAS DE UM PORTUGUÊS NO BRASIL SEISCENTISTA


Para melhor compreensão do que significava ser um homossexual numa época em que sê-lo poderia ser uma questão vital, pois se houvesse uma acusação formal desta prática junto ao Santo Ofício este instauraria um inquérito, no qual seria julgado o mérito da acusação e se o veredicto resultante fosse culpado, o réu, dentre outras penas, poderia acabar ardendo na fogueira, então Mott, em sua obra aqui resenhada, dedica um capítulo inteiro para biografar as desventuras de um gay do período.
O personagem em questão é Luiz Delgado, um português da cidade de Évora; a narração inicia-se no ano de 1665.Todas as citações episódicas relatadas por Mott e seus cúmplices, embora pareça ser retirada de um romance, foram copilados na Torre do Tombo, nos seguintes processos: Inquisição de Lisboa, n°. 4.769, 4.230; Inquisição de Évora, n°. 4.995.
Não caberia aqui descrever todos os atos descritos nos autos dos processos relativo as atividades de homossexuais de Luiz Delgado. Por outro lado , no entanto cabe dizer que até o fim de sua vida este pederasta passou por 8 diferentes cadeias sempre sob a mesma acusação: ser praticante do pecado nefando.
De uma maneira ou outra sempre conseguia se safar da fogueira, embora de outros castigos e torturas não tivesse a mesma sorte. Em uma de suas detenções e conseqüente punição , fora degredado de Portugal para o Brasil, retomando sua vida em Salvador, onde não se refreou de continuar no “vício” que o trouxera até ali. Mesmo casando-se com uma mulher continuava a manter relacionamentos sexuais com outros homens.
Os relacionamentos de Luiz Delgado eram sempre de ordem afetiva – amorosa. E na verdade era isso que mais incomodava a sociedade soteropolitana do século XVII. Esses relacionamentos tornavam a seus amantes seus iguais. Esse gay inveterado nunca demonstrou nenhum tipo de preconceito relativo à raça ou origem social de seus amantes e nem mesmo relativo a idade, atitude muito prezada na época, onde os homens mais novos sempre deveriam render respeito aos mais velhos. Esse comportamento democrático indignava a sociedade local, que via nesta situação uma subversão não apenas natural, no que se refere ao sexo, mas principalmente no tocante ao social.
Luiz Delgado resistiu de todas as maneiras possíveis às
arbitrariedades de um sistema, que, comandado pela Igreja quis impor um modo de vida aqueles que consideravam desajustados sociais, embora perseguido não deixou de ser aquilo que era, um homem apaixonado por outros homens, apenas desejoso do amor destes para consigo.
Mott conclui dizendo que graças a homens de fibra como Luiz Delgado, no mundo todo, na maioria dos países em que vigora o Estado de Direito, a homossexualidade deixou de ser crime. No entanto ele lembra o surgimento de um termo que expressa um sentimento antigo: a homofobia. Essa prática da intolerância ao homossexual e ao homossexualismo como um todo é um comportamento patológico, segundo Mott, e varia de cultura para cultura.
No Brasil a cultura judaico-cristã alimenta o preconceito ao homossexualismo. A Igreja exerce ainda enorme influência em assuntos relativos à sexo. Entretanto, o segmento homossexual da sociedade tem aos poucos conseguido maior visibilidade. Para que esta visibilidade reverta em respeito ainda pode levar algum tempo.




MARIA, VIRGEM OU NÃO?
QUATRO SÉCULOS DE CONTESTAÇÃO NO BRASIL


Mott faz uma referência a Shakespeare, em Otelo, ”chegar à dúvida já é ser atrevido...”.Esse referência “casa” com a idéia a ser desenvolvida por Mott no último capítulo de sua obra em questão. A virgindade da Santa Mãe de Deus é questionada por Mott e o mais interessante é que ele utiliza-se de suas pesquisas na Torre do Tombo como argumento deste seu questionamento e mais, que estes mesmos relatos encontrados na sua pesquisa já constituíam em sua época contestações da pretensa virgindade da “Virgem Maria”.
Mott trás a tona o ousado questionamento, descrença, desprezo ou ainda a indiferença pelo sagrado dogma da inviolabilidade de Maria Santíssima. O ousado fica por conta de que, se alguém fosse pego em flagrante delito, pois todos esses atos a cima citados eram considerados heresias, portanto, crimes de ordem religiosa, estariam sujeitos as mais variadas formas de punição pela Inquisição, incluindo tortura e/ou morte.
O culto à Maria no Brasil é registrado desde o período colonial. Sob as mais variadas denominações Maria sempre se fez presente na idolatria católica brasileira, sendo sua adoração superior a dedicada ao próprio Deus. Costuma-se ainda dizer um ditado: “Peça a Mãe que o Filho obedece.” Muitos entregaram seus filhos aos cuidados de Maria na hora do batismo, tendo estes a ela como madrinha. A oração mais popular entre os católicos é a Ave Maria. Enfim, desde tempos imemoriais Maria faz parte do imaginário cristão, sendo Sua Virgindade dogma basal da fé católica.
Entretanto, Maria não foi a primeira virgem a conceber um ser divino. Existem registros dos mais variados na mitologia de povos antigos relatando eventos similares, maias hindus e chineses são exemplos referente a isso. Portanto, ser Maria uma mulher que recebe a incumbência de gestar um ser mítico não era novidade no mundo antigo.
Com um tom ácido, sarcástico e irônico Mott chama os defensores deste dogma de teólogos- obstétricos e o próprio dogma de ginecologia mariológica. Argumenta ele a dificuldade de compreender à luz da razão tal arbitrariedade católica. Como poderia Maria ter concebido um ser sem a participação de um homem e ainda, como este ser ao ser gestado e posteriormente poderia ter vindo à luz sem romper o hímen da Mão de Deus ?
Luiz Mott narra vários episódios em que pessoas foram parar frente aos tribunais inquisitoriais por descrer neste dogma, blasfemar contra Maria ou ser indiferente com esta, como em um caso registrado em que uma mulher estava sob julgamento porque na hora do seu parto chamou pelo nome de sua própria mãe e não pelo da Santa Maria.
O dogma em questão serve à Igreja para esta impor a seus fiéis uma moral própria. Perante esse código moral a virgindade é vista como uma virtude e o contrário; uma mulher que ainda não havia contraído núpcias matrimoniais e deixasse de ser virgem constituiria um grave pecado. Na verdade, argumenta Mott, esses argumentos eram frutos de uma sociedade patriarcal que vê a mulher como um ser menor e que deve esta estar sempre sob a tutela de um homem.

Podem as ciências sociais encontrarem-se com a Verdade? ?

“Em questão de ciência a autoridade de mil pessoas não tem o mesmo valor que o raciocínio humilde de um só indivíduo.”
GALILEU GALILEI

A Verdade, um ser a muito procurado pela humanidade continua sendo fonte de inúmeras controvérsias. A mais ou menos 2.500 anos atrás um tal de Sócrates já se questionava a respeito. Sua vida foi registrada para posteridade por seu discípulo mais famoso, Platão.Esse, entre outros diálogos, escreveu um chamado Teeteto, onde Sócrates pergunta ao personagem que dá título a este diálogo se o mesmo saberia discorrer a respeito do que seria conhecimento. O diálogo prossegue e chegam a três possíveis respostas. Primeiramente argumenta-se que conhecimento seria a Doxa – opinião. Posteriormente percebe-se que a opinião não poderia ser, pois proporcionaria , assim como justificaria, a forma protagoriana de buscar-se a pretensa Verdade epistemológica, onde esta seria relativa a cada opinião, o que tornaria impossível a objetivação do conhecimento.
O diálogo socrático prossegue e chega-se a uma encruzilhada epistemológica e pensa-se então que o conhecimento advém da opinião verdadeira. Entretanto, como conhecer ou ainda reconhecer a verdade por trás de cada opinião? Então suscíta-se que o conhecimento é alcançado através da opinião verdadeira justificada. Contudo, o prosseguimento do diálogo demonstra que essa conclusão não seria ainda satisfatória para o elucidamento a que se propôs. Enfim, Sócrates termina o diálogo sem dizer explicitamente como seria possível chegar ao conhecimento e por sua vez a Verdade. Portanto essa obra platônica é considerada uma obra aporética, suscitando questionamentos, entretanto não fornecendo de pronto a resposta efetiva.
Esses questionamentos vêem ocupando as mentes pensantes desde então. Porém a racionalidade, sendo esta um produto histórico, sofreu durante quase toda a Idade Média, uma imensa desacerelação, ou seja, neste período o conhecimento, por conseguinte a verdade era ditada pela Igreja, sendo esta Soberana e Absoluta representante de Deus na Terra. Sendo desta forma, as verdades deixaram de ser buscadas através da razão, ou ainda somente através desta. A Igreja impunha suas opiniões como sendo estas Verdades reveladas, não estando estas sujeitas a contestações, pois advinham direto de Deus. Alguns tentaram conciliar a Razão e a Fé e estas tentativas tornaram conhecidos Santo Agostinho, São Tomás de Aquino entre outros.
Ao chegar o fim desse longo período histórico a humanidade retoma o classicismo. Atitude que reflete em toda forma de Cultura, literatura, pintura,arquitetura e na maneira de buscar o conhecimento. A Razão retoma então seu lugar como mestra epistemológica, esse período fica conhecido historicamente como Renascimento. A racionalidade é quem dita a ordem do dia na Modernidade. Com a chegada do século XVIII e com ele o Iluminismo a razão chega ao seu ápice, levando Luz a onde a razão ainda não tinha chego.
Neste período que se iniciava então, a ordem era “Fé na Razão”. No final do século XVIII e início do XIX o conhecimento histórico começa a ser discutido. Partindo de Condorcet, filósofo ligado à Enciclopédia, foi um dos primeiros, senão o primeiro a formular a idéia de uma ciência social.
Condorcet formula uma teoria utópica, contestatória do sistema de então. Esse filósofo dá inicio a Escola do pensamento Positivo, que no período em questão possuía, como já mencionado, um caráter revolucionário. Parece estranho à primeira vista para os historiadores do século XXI observar o Positivismo como uma corrente de pensamento revolucionário já que ele é mais lembrado pelo reacionarismo de August Comte. Entretanto isso se deve ao fato de que o conhecimento, por conseguinte a Verdade, serem produtos histórico sofreram a alteridade do mundo, o Devir histórico.
No momento em que Comte. reformula o positivismo aos seus moldes, este, o positivismo, já era parte integrante de uma elite burguesa, a qual se encontrava no poder, portanto não mais revolucionária.
O positivismo tinha por característica básica o enquadramento epistemológico das ciências Naturais, Físicas juntamente com as Ciências Sociais. Postulavam que para se conhecer a sociedade bastava utilizar sobre esta o mesmo método das Ciências ditas Naturais. Partiam do pressuposto de que a sociedade humana é regulada por leis naturais, que essas mesmas leis regulavam a fisiologia social. Concluíam desse pressuposto então que, para se chegar a conhecer a sociedade em todos seus meandros as leis para tanto seriam as mesmas utilizadas para conhecer a Natureza. O que gerava mais uma conclusão lógica, se partindo do pressuposto defendido, que assim como o processo do conhecimento das ciências naturais eram neutras, livres de qualquer valoração, assim também deveria ser o processo epistemológico das Ciências Sociais.
Posterior a Comte existiram outros positivistas com ideologias diferenciadas. Os mais famosos foram Max Weber e Durkheim. Embora cada um acrescentou seu ponto de vista nesta teoria esta continuava sendo organicista e fisiologista, cujo conteúdo filosófico e epistêmico gerava um olhar conservador e até mesmo reacionário, como no caso de Comte, sobre o mundo. Sendo então, no final do século XIX o Positivismo representava um discurso legitimatório, uma Ideologia de fato, ao contrário do período em que deu sua gênese, onde o discurso era utópico.
Entretanto, juntamente, ou seja, em épocas contemporâneas, surge o Historicismo, outra corrente do pensamento humano. Este pensamento deu origem, no final do século XVIII, a Sociologia do Conhecimento, posteriormente a História como disciplina acadêmica. Essa escola colocou o homem no centro do conhecimento histórico, pois esse é parte da própria História. Essa forma de pensar o conhecimento transforma o homem não somente em sujeito, mas também em objeto, ou seja, sujeito observando o próprio sujeito.
Essa maneira de obter o conhecimento resultou em uma problemática: Como proporcionar a transubjetividade necessária para chegue-se a um consenso objetivo? Surge então a pecha que o Historicismo carrega até hoje. Sua incapacidade de gerar objetividade em seu discurso epistemológico. Sendo desta forma pode se considerar o Historicismo um método científico confiável?
Alguns historicista tentaram resolver o problema formatando um quebra cabeça científico, o ecleticismo, onde, a parte melhor de cada pensamento constituiria um todo. Formulação que não convenceu a crítica, mostrando-se fraca e insuficiente para a realização de seu objetivo, a verdade. Provocava mais indagações do que respostas. Dilthey, filósofo alemão, morreu em idade avançada e confessou antes de morrer não ter conseguido resolver os problemas suscitados pelo historicismo, mesmo tendo dedicado à vida toda neste objetivo.
Os vários pensamentos de cunho historicista geravam inúmeras reflexões, destas muitas alimentaram outra Escola então nascente, o Marxismo. Karl Marx, outro filósofo alemão, embora o termo não seja unânime, engendrou aquilo que ficaria conhecido como materialismo histórico dialético.
Essa corrente do pensamento afirmava que a luta de classe era o que gerava mobilidade histórica. Afirmava que o conhecimento ou a ciência era resultado desta mesma luta de classes. A utilização desta pelas classes dominantes era segundo Marx, facilmente observado através do discurso ideológico contido na Ciência político-econômica.
Entretanto, transformar a obtenção do conhecimento científico verdadeiro como resultante de um único ponto de vista, da classe proletária, é cair num relativismo, embora Marx afirme ser isento, pois acredita estar sendo imparcial quanto sua tese, pois afirma que a Ciência pode ser obtida através de outra classe senão o proletariado, até mesmo da pequena burguesia e da própria burguesia, como no caso de Sismondi e Ricardo, ambos representantes da burguesia. Para Marx o que realmente contava era a intenção e a boa vontade em se buscar a verdade de fato. Porém desta maneira Marx cai na rede crítica do positivismo, pois desta forma Marx acrescenta elementos morais e psicológicos em sua teoria dita materialista, assim como o próprio ecletismo, pois ao selecionar fragmentos teóricos para formatar um todo, Marx cai na mesma incógnita historicista.
Um estudo metódico do livro de Michael Löwy, “Ideologias e Ciência Social – Elementos para uma análise marxista.” Demonstra que o autor em questão é marxista. A forma em que ele é irônico ao apresentar o Positivismo e o Historicismo, sua apresentação é carregada de valor de juízo. Ao apresentar o marxismo ele não formula nenhuma proposição hegeliana, nem mesmo menciona aquele que influenciou Marx em sua teoria, ou posso dizer dogma. Não se pode esquecer que se trata de um pensamento Absoluto e determinista, pois ao subverter a teoria hegeliana Marx retirou o atributo “Absoluto” de Deus e transpôs este no homem, sendo o materialismo histórico representado pela luta de classes, em última análise, no homem. É determinista, critica feita constantemente ao hegelianismo, porém não é lembrado que o marxismo também o é. Isso se dá no tocante ao necessitarismo da revolução proletária que antecederá ao comunismo efetivo. Além do mais, por ser uma teoria totalizante, sua prática se dará somente diante ao totalitarismo, coisa esta já comprovada pela própria história. Retomando o texto do autor, um único momento em que percebi um pouco de honestidade científica foi quando ao final do capítulo IV, Michael Löwy correlaciona a teoria marxista com a religião, pois para crer em seus postulados é necessário uma boa dose de Fé.
Outra abordagem que deve ser frisada; o próprio Marx não era um pobre proletário e muito menos Engels. É interessante notar que, na história, a grande maioria daqueles que professaram a “FÉ” marxista também não eram pertencente a pobre coitada classe proletária. A realidade mostra exatamente o contrário, quem está embaixo quer subir e adentrar ao mundo dito pequeno-burguês ou ainda quem sabe pertencer de fato a burguesia. Longe de ser especulações, tais afirmativas são constatações empíricas de que o “pobre”, o proletário, para usar um termo da liturgia marxista, não deseja continuar nesta sua situação e almeja conquistar, não uma casa comunal, mas uma propriedade, a melhor que o capital possa adquirir. Essas afirmativas últimas poderão ser facilmente taxadas por algum marxista com alguma de suas “ladainhas”, “alienado”, por exemplo, entretanto, neste momento confessam sua derrota frente aos fatos históricos e demonstram sua falta de capacidade argumentativa.
O parágrafo imediatamente anterior a este é uma comprovação de que a suspensão de juízo quando em busca do conhecimento humano é inviável. O autor, cuja obra está supracitada, ao transcorrer sobre as Escolas em questão, não consegue manter sua pretensa neutralidade como almejava o positivismo; coloca-se dentro do próprio texto com dizeres “eu penso”, “eu acredito”, entre outras formulações que demonstram sua posição em relação aquilo que procura conhecer, assim como apregoa o Historicismo torna-se objeto de sua própria análise, perdendo o distanciamento dito necessário para busca efetiva da verdade epistemológica. Na tentativa de resolver o problema cai no relativismo, pois ao acrescentar opiniões a sua textualização, contextualiza uma tomada de posição, a sua, um círculo vicioso.
Estas mesmas opiniões são facilmente diagnosticadas, um termo que cabe ao se tratar disto, como sendo uma tomada de posição claramente marxista. Posição que disfarçadamente o próprio, simuladamente tenta disfarçar ao ser irônico, como já comentado, no final do capítulo IV. Porém ele ali está sendo mais crítico da Religião, da Teologia, ou ainda de Deus do que propriamente do marxismo.
Foi lido outra obra, com o propósito de comparará-la com a teoria marxista no tocante a conceituar esta como tal ou negar esta conceituação, dizendo os porquês. Foi lido o livro “História & Teoria – Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade.” De José Carlos Reis. A leitura foi feita com voracidade, a qual proporcionou indizível prazer intelectual a este que escreve.
Apresentei este livro a um outro professor em sala de aula e este comentou que o autor em questão era marxista, do qual houve discordância veemente de minha parte. O livro está impregnado de juízo de valor, disse o professor, acredito que ele deve ter esquecido de Max Weber quando quando proferiu essa infeliz sentença. Ele, o autor do livro, comenta as teorias da Modernidade Iluminista, passa pelo positivismo e pelo marxismo, porém é no Historicismo que ele demonstra empatia, sua identificação com Dilthey , pensador desta Escola é notória.
O título deste texto implicitamente demonstra a dificuldade de se chegar a Verdade e por conseguinte ao conhecimento. A pergunta que fica é: É possível fazer Ciência? Principalmente ciências humanas? Mesmo antes de ler o livro de José Carlos Reis já me questionava sobre esta dificuldade e argumentava se em virtude das evidentes impossibilidades de se chegar a Verdade quando esta se refere a Ciência Humanas eu atrevia-me a pensar que não, não é possível fazer Ciência quando o objeto deste é o próprio homem. Portanto, História, a Sociologia e as demais Ciências Socias na verdade não são ciência, são atividades intelectuais que proporcionam prazer, segundo a interpretação a interpretação do autor deste livro e da qual eu compartilho. Atividade esta entretanto que deve ser desenvolvida com uma postura de quem faz ciência, dignidade, respeito, profissionalismo ético, mas sobretudo honestidade consigo e para com o outro . Neste momento eu concordo com Marx, o que conta é a motivação e a postura diante do que se propõem a fazer. Se HISTÓRIA não é ciência? E daí? Continuará a fascinar aqueles que por ela se apaixonaram. Parafraseando Shakespeare , “O que é um nome? Acaso a rosa tivesse outro nome, não teria esta o mesmo perfume?” O sábio dramaturgo inglês punha aqui, como costumeiramente fazia, uma questão claramente filosófica, ontológica na boca de sua doce Julieta. Os historiadores reconhecem o valor de sua atividade, subjetivamente a devoram, agora, perdendo esta o “status” de Ciência, deixará de ser o que é para cada um de seus partidários? Acredito que não! A atitude racional e científica e até mesmo lógica e aceitar humildemente a conclusão decorrente das premissas históricas: História não é Ciência. José Carlos Reis mostrou que não são poucos que pensam desta forma. Venha engrossar este ponto de vista! “ Mais um relativista!”
Não sou marxista, penso que o conteúdo deste ensaio deixa isso explícito, entretanto derivo prazer intelectual em ler e transcorrer sobre tema tão vasto, tanto porque meus conhecimentos a respeito são limitados e acredito que quanto mais sei menos sei, a proporção epistemológica e cognitiva é paradoxalmente e proporcionalmente inversa, coisas que o velho e bom Sócrates já dizia, enfim, embora não seja marxista desejo conhecer melhor essa teoria e a leitura a respeito toda vez que ma faço transcorre naturalmente, prazerosamente. Tudo isso para contrapor com outro senhor, Émile Durkheim, emitindo uma opinião pessoal antes de adentrar no trabalho propriamente dito, é um sujeito cansativo cuja teoria a mim me parece insípida assim como tudo o mais que se aproxime do positivismo.
Tentar estudar as relações humanas como se estuda a queda livre dos corpos no vácuo é além de uma irracionalidade epistemológica assim como uma arrogância, pois nesta postura está implícita a crença de que se é possível ter um conhecimento universal a respeito das relações humanas assim como se se acreditou poder ter sobre a natureza, no caso a Física, um conhecimento Absoluto.
Ao meu ver a produção epistemológica “durkheiminiana” fica truncada, o português diria “Isto não resulta opâ!”Traduzindo para o “idioma brasileiro”, “Isso não funciona.” Durkheim nega toda uma tradição filosófica, nega a dedução como meio de se chegar ao conhecimento. O absurdo ainda não foi apresentado, até mesmo na época Weber criticou essa teoria por este pressuposto. Por postular o método indutivo, empirista e subjetivo, Durkheim adverte o pesquisador de que este deverá ao mesmo tempo em que adentra a pesquisa manter-se distante desta. Weber brinca dizendo que seria como se alguém que afundando em um lamaçal no intuito de se salvar começasse a puxar-se pelos cabelos. Ou seja, como o pesquisador que está imiscuindo definitivamente na pesquisa não ter nenhum senso valorativo a respeito desta mesma pesquisa?
Weber tem um olhar mais pragmático, aceitável e diria racional e esse racional fica por minha conta. Ele diz ser impossível não ter nenhuma carga valorativa prévia no inicio de uma pesquisa. Essa é que dirá até mesmo o tipo de pesquisa que será desenvolvida, o interesse desta, os objetivos da mesma, as hipóteses que serão levantadas. Entretanto, Weber converge com Durkheim, no momento do desenvolvimento da pesquisa e principalmente da conclusão, o sujeito do conhecimento deverá estar livre de qualquer tipo de valoração que possa o influenciar a pesquisa.
Disse antes que a teoria de Durkheim é truncada e explico melhor. A mim parece contraditório ao mesmo tempo existam premissas dentro de uma teoria que sejam categóricas, absolutas com a que se refere a obrigação de despir-se de todo sentimento e de toda pré-noção em relação ao objeto e ao mesmo tem ao definir o conceito de normal utiliza-se de premissas relativas, pragmáticas. Isso dentro de uma construção teórica causa a ruptura da “arquitetura” do “edifício” que foi construído contradições só mantém-se edificadas se forem devidamente conciliadas como diria um filósofo analítico ou se forem sintetizadas se forem ditas pelas palavras de um dialético, caso contrário “não resulta opâ!” Ainda mais por quem renega a filosofia e principalmente a dedução e apela para o empirismo que só mostra as aparências do mundo sensível sem demonstrar a verdade que somente a razão pode fornecer.
Salve o Iluminismo, salve Adam Smith, salve Hegel ,salve o liberalismo, mas também salvem, com ressalvas é claro, Marx, pois embora discordo ideologicamente deste, quanto visão de mundo, revoluções, etecetera e tal, este não renegou a filosofia como meio de se chegar a Verdade, principalmente a Razão, Filosofia desconectada da razão não pode ser considerada filosofia. Agora, depois de transcorrer estas laudas sobre o assunto proposto, a conclusão a que se chega é socrática: Que nada sei! É possível encontrarmos a verdade ao fazermos ciência do social? São estas reflexões que mantém acessa a sede de conhecer e de buscar esta TAL VERDADE estando ela na sociologia, na história ou em qualquer outra ciência. Cabe a nós , cientistas da HUMANIDADE, como humanistas que somos, oriundos de ciências que se devotam a compreensão do homem sob seus mais variados aspectos estarmos atentos no transcorrer do desenvolvimento de nossa profissão para contribuirmos para o engrandecimento deste conhecimento , com nossas pesquisas e nossa postura perante a sociedade como profissionais competentes que formarão outros profissionais que se o serão competentes em muito dependerá da minha parte , do meu interesse como profissional. E assim continuarmos, embora sabedores de que nunca a encontraremos de fato , continuarmos a buscarmos esta VERDADE!